sábado, novembro 17, 2012

‘Gerações’- Capítulo 19

Carlos Lopes (Geração 1969)

O podre existe até dentro do podre. Não pregava olho desde que tentara enviar a carta a Carla por intermédio de Pedro Rossas. Desde então, a tortura do sono havia sido ordenada pelo tio de Carla. A cela onde agora estava, ora quente ora gelada, parecia ditar um futuro sombrio e definitivo. Nunca mais sairei deste sítio… Nunca mais a verei… Nunca mais.

Tentava adormecer com o conforto das lágrimas quentes, mas sempre que fechava os olhos era forçado a manter-se acordado. Uma e outra vez. A fome, o sono, o frio ou o calor, tudo desgastava Carlos. Estava extenuado, esgotado, destruído. Perdera a força para se levantar. Uma vez mais fechou os olhos, e uma vez mais foi enregelado por um balde de água gélida. Mais uma vez se manteve acordado, com a loucura da privação de sono a somar-se à sua loucura basal. Era um homem perdido. Desmiolado. Desorientado…

Horas e horas passaram. Dias. Passaram e passaram, até que alguém finalmente veio. Desta vez, veio fardado. As botas ressoavam nas paredes do longo corredor da prisão. Entrou sem falar, anunciando com o silêncio que coisa boa não se seguiria. Agarrou-o e arrastou-o para uma nova sala. Deixou-o cair com estrondo, e Carlos sentiu os seus loucos ossos bater no chão frio e duro. Sentia o betão na cara, nas coxas, nas ancas. Tinha sido despido e tinha um espelho pela frente. Não teve forças para olhar o resto da sala. Descontente com a visão do espelho, fechou os olhos e concentrou-se no frio que lhe acariciava a pele. Foi levantado e sentado numa cadeira de ferro. Qualquer réstia de calor que lhe restasse no sangue foi absorvido pelo beijo do metal. Foi preso com cordas e movido uma e outra vez. Não observava o que se passava. Irei finalmente poder dormir?… Sorriu, por dentro. Entrava lentamente no submundo dos sonhos, e sentia Carla e a sua humidade, Carla e o seu calor, Carla e a sua compaixão, Carla e… um arrepio excruciante! Sentiu-se torcer, chorar, tremer… Sentiu a electricidade entrar e sair. Sentiu-a fluir. Sentiu-a a trespassar, a morder, a ferrar! Sentiu-se cair e sentiu as cordas que o seguravam. Sentiu novamente o frio da cadeira, assombrado pelo anunciar de um novo choque. E então, viu-o de novo. Pedro Rossas. Ouviu as mesmas perguntas, sentiu de novo o choque e o frio e a água do balde. E as perguntas, e o choque, e a dor, e as perguntas. Foi trespassado e perfurado, queimado pelo frio, pelo quente e pelo choque. Foi levado ao extremo, e por fim desistiram… Por fim deixaram-no, estendido, de volta ao chão da sua cela. Por fim dormiu, por fim foi alimentado, por fim acordou e falou com o segundo PIDE que lhe veio trazer comida. Esse não se deixou levar. Mas outro veio. E outro depois desse. E como se diz e se comprovou, à terceira é mesmo de vez… O terceiro ouviu-o. Ouviu-o, e deixou-se subornar. Escreveu novamente a carta que levaria as palavras do seu coração aos olhos de Carla. Entregou-as ao traidor da PIDE, seu salvador. Afinal de contas, o podre existe até dentro do podre, e no momento certo, até pode dar jeito…

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